sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Palavras-Trans.



As palavras têm diversas funções na vida da gente. Algumas ferem, outras recobrem, outras saúdam, outras cativam, tantas mais encorajam. Enfim, a lista das funções que as palavras têm em nossas vidas é gigantesca. Noutro dia, conversando com uma amiga, chegamos à conclusão de que nossas mães nos mostraram, através de palavras específicas, que elas não se reduziam (nem se reduzem) ao que as palavras que elas usavam (e usam), apontam. Tanto as palavras, como nossas mães (e, é claro, tantas outras!), deixavam passar algo mais, algo além, meio dito-e-não-dito. Algo mal-dito e bem-dito, ao mesmo tempo.

Lesco-lesco e mimi-cocó, são palavras cheias. Cheias de sentido para mim e minha amiga. Além de serem engraçadíssimas! Encarnadas, saídas da carne viva, em movimento, e no roteiro de cada família, essas palavras vão dando sentido a uma cena, a um pedido, a uma aflição; fornecem suporte a uma porção de fantasias que cada membro dessas famílias carrega dentro de si, além das lembranças que nos recheiam. Mas elas não são “só” isso. Recolocadas em seus vários minutos de fama há tempos atrás (e ainda hoje, por serem repetidas por seus “fãs”), são a encarnação de nossas capacidades; sobretudo nossas capacidades de lidarmos com as nossas incapacidades, nossos furos, nossas impossibilidades, com as impossibilidades da vida.


De onde foram tiradas essas palavras? Alguém lhes havia ensinado isso? Elas mesmas as tinham inventado? Nunca saberemos e, talvez, isso não seja o que realmente importa, pois é justamente no lesco-lesco do dia a dia, e através dos mimis-cocós proferidos quantas vezes forem necessárias, que fomos (e vamos!) nos formando e nos informando de que uma das melhores funções das palavras em nossas vidas é a de nos apresentar a transitoriedade dos objetos, dos fatos, da própria vida... Que não pode e não deve parar...

Elas também nos mostram a nossa história antes de nós. A história da história de alguém que veio antes de nós. Nossa história ramificada, com raízes em lugares que fazem parte destas histórias, até chegar a nossa. As palavras atravessam mares, trovões, dias frios, horas, anos e nos perseguem embora algumas nós façamos questão de carregar. Como lesco-lesco e mimi-cocó!

Mãe tem sempre essa coisa de mais íntimo e, ao mesmo tempo, de muito estranho... De estar e não estar no lugar da angústia, de reconhecer que as coisas tem que continuar, tem que ser transmitidas, para que a vida continue seu curso...

Dizer “mimi-cocó”, quando as coisas não saíam do jeito certo ou esperado, era a forma que minha mãe tinha de dizer “vamos em frente!”, sem fazer de conta que nada estava acontecendo, reconhecendo o imprevisto, e continuando apesar dele e através dele... E muitas vezes, para meu espanto, trans-gredindo regras, costumes... O que me fazia pensar: “Mas, afinal, o que é o certo?”.

Minha mãe falava pra caramba, não era brincadeira! Mas, quando solicitada além de suas forças ou quando exigíamos dela uma postura assim ou assada ou quando estávamos sem empregada e ela se camuflava de maria além da tarefa da criação dos filhos, ela dizia apenas: “Minha filha, to aqui no lesco-lesco, se der deu, se não der não deu”. Hahaha é claro que eu estou rindo agora porque na hora ficava com raiva, mas ao mesmo tempo percebia que minha mãe era uma só e não tinha condições de atender aos nossos pedidos ou chamados sempre que queríamos, e, de alguma forma, eu me sentia acolhida, acalentada, pois minha mãe tinha me escutado e falado comigo. Eu sabia que quando lhe fosse possível, ela estaria presente, ela viria me ajudar ou me perguntar se eu ainda precisava da ajuda dela. Muitas vezes isso bastava. Minha mãe me apresentava, assim, através de sua palavra enigmática, a possibilidade da continuidade, da confiança, para além das dificuldades.

Minha mãe me deixou muitas coisas além de uma lembrança bem quente e cheia de quem ela era. As Palavras. As palavras e a forma como a minha mãe as empregava povoam o meu ser e agradeço por ela ter sido uma apreciadora das palavras. Minha mãe cuidava das palavras que manipulava e através das quais se expressava. E mesmo que visse uma jogadinha ou sendo mal tratada, recolhia a pobre coitada e dava um trato nela, logo aquela palavra ganhava vida nova e podia sair lépida e fagueira novamente, novinha em folha.

Volta e meia me ouço falando com a minha filha da mesmíssima forma como minha mãe falava comigo e com o meu irmão. Palavras idênticas, frases ditas no mesmo tom. Fico muito impressionada porque são frases e acordes que identificam tanto o esporro quanto o carinho. Não tem como tapar o sol com a peneira e dizer que não recebemos e educamos nossos filhos com traços apoiados na maneira como fomos recebidos e educados. Convidados ou não, nós chegamos ao mundo por intermédio de uma mulher, que se transformou em nossas mães, e tais como nós, elas também foram filhas e tiveram lá suas maneiras de lidar com a forma (não fórmula) que foram tratadas.

Isso tudo pra dizer que nosso infantil é alicerçado pela construção do vínculo estabelecido entre nós e nossas mães, e as palavras ditas por elas nos embalam a vida toda e nossos filhos, mesmo que não tenham conhecido suas avós, receberão através de nós sua herança verbal, suas tradicionais palavras-trans, palavras-mágicas que cumprem sua trajetória familiar e, por vezes, ampliam seus horizontes e são captadas por outros tantos que a elas se enfeitiçam. O tempo libidinal, o tempo do inconsciente não passa e é como se ainda vivêssemos lá, enfeitiçados pela confiança, pelo desconforto, pelo ódio, pelo amor, e por mais uma porrada de coisas e adjetivos que vamos introjetando e projetando ao longo da vida.

Infiltradas em nossas veias e músculos, essas palavras são capazes de indicar se será um dia de sol ou de chuva na previsão familiar e, com isso, sugerem aos seus integrantes se é melhor sair agasalhado ou de canga e chinelinho. E lá vamos nós, herdeiras e trans-formadoras dos efeitos dos lesco-lescos e mimis-cocós de nossas mães, de todas as mães que souberam transmitir a confiança e a continuidade de ser através da vida e da inevitável finitude. Abençoadas sejam estas mulheres (e nós também)!
bjs
AP e EP

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

“…VAI PASSAR…”


Tem sido cada vez mais comum encontrarmos textos de psicanalistas (e sociólogos, filósofos) falando sobre o maior problema enfrentado dos tempos atuais: a falta de tempo... para pensar, refletir, sentir, sonhar, fazer nada, ou fazer o que realmente gostamos de fazer.

Uma das inúmeras conseqüências (além da depressão, dos estados depressivos, dos estados de expectativa ansiosa, das compulsões, síndromes do pânico etc), é o agravamento de certas sensações que trazemos conosco desde muito tempo, dentre elas, a necessidade de lutarmos por nossas vidas, de nos defendermos, de sermos alguém... para os outros e para nós mesmos. Imersos num mundo cada vez mais exigente (em todos os sentidos!), nos sentimos cada vez menos; porque estamos cada vez mais sozinhos!

Tal como no filme “Ensaio sobre a cegueira”, encontramo-nos absolutamente sós em nossas aflições, porque o nosso vizinho, amigo, pai, mãe, marido, amiga, filho etc, etc, também está tentando sobreviver e, por isso, não pode nos oferecer a oportunidade de nos escutar, de se escutar. Não temos mais, portanto, sequer a chance de nos queixarmos! Para quem? E de que adiantaria isso?

A velocidade com a qual temos sido levados nos retira, em primeiríssimo lugar, a consciência de termos um corpo capaz de sentir e, não apenas, de obedecer aos inúmeros apelos, acumulativos, de “faça isso”, “faça aquilo”, “seja assim”, “seja assado”...

Não há mais ninguém para acolher nossas dores... Não há mais ninguém capaz de nos transmitir o mínimo de esperança no sentido mais íntimo, e mais simples, dessa palavra: ter esperança é ser capaz de usufruir de nossa capacidade de esperar.

Como esperar, se o “com-corrente” não pára de correr? Como esperar se o “Sistema” nunca sai do ar e, quando sai, eu não consigo dizer “Ai, que bom! Pausa!” – pelo contrário, nos desesperamos (perdemos a esperança!) numa fração de segundos!

E assim vivemos, se é que se pode chamar o que temos hoje de vida... Sem ninguém para quem nos queixarmos, sem ninguém que nos possa ouvir, sem que possamos, enfim, dizer para nós mesmos: “vai passar...”.

A esperança é um dos organizadores de nosso funcionamento psíquico e emocional.

EP