sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Palavras-Trans.



As palavras têm diversas funções na vida da gente. Algumas ferem, outras recobrem, outras saúdam, outras cativam, tantas mais encorajam. Enfim, a lista das funções que as palavras têm em nossas vidas é gigantesca. Noutro dia, conversando com uma amiga, chegamos à conclusão de que nossas mães nos mostraram, através de palavras específicas, que elas não se reduziam (nem se reduzem) ao que as palavras que elas usavam (e usam), apontam. Tanto as palavras, como nossas mães (e, é claro, tantas outras!), deixavam passar algo mais, algo além, meio dito-e-não-dito. Algo mal-dito e bem-dito, ao mesmo tempo.

Lesco-lesco e mimi-cocó, são palavras cheias. Cheias de sentido para mim e minha amiga. Além de serem engraçadíssimas! Encarnadas, saídas da carne viva, em movimento, e no roteiro de cada família, essas palavras vão dando sentido a uma cena, a um pedido, a uma aflição; fornecem suporte a uma porção de fantasias que cada membro dessas famílias carrega dentro de si, além das lembranças que nos recheiam. Mas elas não são “só” isso. Recolocadas em seus vários minutos de fama há tempos atrás (e ainda hoje, por serem repetidas por seus “fãs”), são a encarnação de nossas capacidades; sobretudo nossas capacidades de lidarmos com as nossas incapacidades, nossos furos, nossas impossibilidades, com as impossibilidades da vida.


De onde foram tiradas essas palavras? Alguém lhes havia ensinado isso? Elas mesmas as tinham inventado? Nunca saberemos e, talvez, isso não seja o que realmente importa, pois é justamente no lesco-lesco do dia a dia, e através dos mimis-cocós proferidos quantas vezes forem necessárias, que fomos (e vamos!) nos formando e nos informando de que uma das melhores funções das palavras em nossas vidas é a de nos apresentar a transitoriedade dos objetos, dos fatos, da própria vida... Que não pode e não deve parar...

Elas também nos mostram a nossa história antes de nós. A história da história de alguém que veio antes de nós. Nossa história ramificada, com raízes em lugares que fazem parte destas histórias, até chegar a nossa. As palavras atravessam mares, trovões, dias frios, horas, anos e nos perseguem embora algumas nós façamos questão de carregar. Como lesco-lesco e mimi-cocó!

Mãe tem sempre essa coisa de mais íntimo e, ao mesmo tempo, de muito estranho... De estar e não estar no lugar da angústia, de reconhecer que as coisas tem que continuar, tem que ser transmitidas, para que a vida continue seu curso...

Dizer “mimi-cocó”, quando as coisas não saíam do jeito certo ou esperado, era a forma que minha mãe tinha de dizer “vamos em frente!”, sem fazer de conta que nada estava acontecendo, reconhecendo o imprevisto, e continuando apesar dele e através dele... E muitas vezes, para meu espanto, trans-gredindo regras, costumes... O que me fazia pensar: “Mas, afinal, o que é o certo?”.

Minha mãe falava pra caramba, não era brincadeira! Mas, quando solicitada além de suas forças ou quando exigíamos dela uma postura assim ou assada ou quando estávamos sem empregada e ela se camuflava de maria além da tarefa da criação dos filhos, ela dizia apenas: “Minha filha, to aqui no lesco-lesco, se der deu, se não der não deu”. Hahaha é claro que eu estou rindo agora porque na hora ficava com raiva, mas ao mesmo tempo percebia que minha mãe era uma só e não tinha condições de atender aos nossos pedidos ou chamados sempre que queríamos, e, de alguma forma, eu me sentia acolhida, acalentada, pois minha mãe tinha me escutado e falado comigo. Eu sabia que quando lhe fosse possível, ela estaria presente, ela viria me ajudar ou me perguntar se eu ainda precisava da ajuda dela. Muitas vezes isso bastava. Minha mãe me apresentava, assim, através de sua palavra enigmática, a possibilidade da continuidade, da confiança, para além das dificuldades.

Minha mãe me deixou muitas coisas além de uma lembrança bem quente e cheia de quem ela era. As Palavras. As palavras e a forma como a minha mãe as empregava povoam o meu ser e agradeço por ela ter sido uma apreciadora das palavras. Minha mãe cuidava das palavras que manipulava e através das quais se expressava. E mesmo que visse uma jogadinha ou sendo mal tratada, recolhia a pobre coitada e dava um trato nela, logo aquela palavra ganhava vida nova e podia sair lépida e fagueira novamente, novinha em folha.

Volta e meia me ouço falando com a minha filha da mesmíssima forma como minha mãe falava comigo e com o meu irmão. Palavras idênticas, frases ditas no mesmo tom. Fico muito impressionada porque são frases e acordes que identificam tanto o esporro quanto o carinho. Não tem como tapar o sol com a peneira e dizer que não recebemos e educamos nossos filhos com traços apoiados na maneira como fomos recebidos e educados. Convidados ou não, nós chegamos ao mundo por intermédio de uma mulher, que se transformou em nossas mães, e tais como nós, elas também foram filhas e tiveram lá suas maneiras de lidar com a forma (não fórmula) que foram tratadas.

Isso tudo pra dizer que nosso infantil é alicerçado pela construção do vínculo estabelecido entre nós e nossas mães, e as palavras ditas por elas nos embalam a vida toda e nossos filhos, mesmo que não tenham conhecido suas avós, receberão através de nós sua herança verbal, suas tradicionais palavras-trans, palavras-mágicas que cumprem sua trajetória familiar e, por vezes, ampliam seus horizontes e são captadas por outros tantos que a elas se enfeitiçam. O tempo libidinal, o tempo do inconsciente não passa e é como se ainda vivêssemos lá, enfeitiçados pela confiança, pelo desconforto, pelo ódio, pelo amor, e por mais uma porrada de coisas e adjetivos que vamos introjetando e projetando ao longo da vida.

Infiltradas em nossas veias e músculos, essas palavras são capazes de indicar se será um dia de sol ou de chuva na previsão familiar e, com isso, sugerem aos seus integrantes se é melhor sair agasalhado ou de canga e chinelinho. E lá vamos nós, herdeiras e trans-formadoras dos efeitos dos lesco-lescos e mimis-cocós de nossas mães, de todas as mães que souberam transmitir a confiança e a continuidade de ser através da vida e da inevitável finitude. Abençoadas sejam estas mulheres (e nós também)!
bjs
AP e EP

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

“…VAI PASSAR…”


Tem sido cada vez mais comum encontrarmos textos de psicanalistas (e sociólogos, filósofos) falando sobre o maior problema enfrentado dos tempos atuais: a falta de tempo... para pensar, refletir, sentir, sonhar, fazer nada, ou fazer o que realmente gostamos de fazer.

Uma das inúmeras conseqüências (além da depressão, dos estados depressivos, dos estados de expectativa ansiosa, das compulsões, síndromes do pânico etc), é o agravamento de certas sensações que trazemos conosco desde muito tempo, dentre elas, a necessidade de lutarmos por nossas vidas, de nos defendermos, de sermos alguém... para os outros e para nós mesmos. Imersos num mundo cada vez mais exigente (em todos os sentidos!), nos sentimos cada vez menos; porque estamos cada vez mais sozinhos!

Tal como no filme “Ensaio sobre a cegueira”, encontramo-nos absolutamente sós em nossas aflições, porque o nosso vizinho, amigo, pai, mãe, marido, amiga, filho etc, etc, também está tentando sobreviver e, por isso, não pode nos oferecer a oportunidade de nos escutar, de se escutar. Não temos mais, portanto, sequer a chance de nos queixarmos! Para quem? E de que adiantaria isso?

A velocidade com a qual temos sido levados nos retira, em primeiríssimo lugar, a consciência de termos um corpo capaz de sentir e, não apenas, de obedecer aos inúmeros apelos, acumulativos, de “faça isso”, “faça aquilo”, “seja assim”, “seja assado”...

Não há mais ninguém para acolher nossas dores... Não há mais ninguém capaz de nos transmitir o mínimo de esperança no sentido mais íntimo, e mais simples, dessa palavra: ter esperança é ser capaz de usufruir de nossa capacidade de esperar.

Como esperar, se o “com-corrente” não pára de correr? Como esperar se o “Sistema” nunca sai do ar e, quando sai, eu não consigo dizer “Ai, que bom! Pausa!” – pelo contrário, nos desesperamos (perdemos a esperança!) numa fração de segundos!

E assim vivemos, se é que se pode chamar o que temos hoje de vida... Sem ninguém para quem nos queixarmos, sem ninguém que nos possa ouvir, sem que possamos, enfim, dizer para nós mesmos: “vai passar...”.

A esperança é um dos organizadores de nosso funcionamento psíquico e emocional.

EP

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

VERMELHO COMO O CÉU.



A vida, o mundo não são justos! E ainda bem! Senão a gente não poderia contar com as forças e os caminhos que nos levam a superar as tragédias e os riscos inevitáveis, que vem junto com o “kit-vida”...

A vida também não tem lógica! Pelo menos não a pobre lógica da nossa consciência, muito limitada, coitada, para dar conta da imensa complexidade das forças que nos movem...

E porque não tem lógica e não é justa, mas é absurdamente forte, a vida encontra sempre um jeito de prevalecer, apesar dos nossos sofrimentos e da nossa implacável ignorância... E esta prevalência da vida não implica, é claro, em termos que seguir, ou estarmos submetidos, a um caminho em linha reta, linear... Não, a vida faz rodeios, dá saltos, encontra saídas que independem de nossa estreiteza consciente...

O filme “Vermelho como o céu” (como outros que sabem falar sobre a vida) é um exemplo muito lindo das complexas forças que regem nossos destinos. Uma tragédia acontecida a um menino de apenas 10 anos, é o motor do verdadeiro renascimento de Mirco e de todos aqueles que estão a seu redor.

Baseado em fatos* , a história de Mirco é a prova e o testemunho de que cada um de nós traz em si a marca da revolução, a capacidade de atravessar barreiras sociais, morais, educacionais, temporais. O que nos faz portadores de uma capacidade de fundar o novo, de transgredir o que é tido como “certo” e “errado”... Abrindo novas possibilidades para todos. Para todos aqueles que respeitam a vida acima de tudo, sem se prenderem ao que nossa medíocre consciência é capaz de reconhecer como “normal”...

“Vermelho como o céu” é uma obra de arte. Como a vida, é um filme que atravessa os tempos, que supera os fatos para fundar novas dimensões, novas formas de fazer valer esse verdadeiro milagre chamado superação.

Mas, para isso, é preciso que fique claro, é preciso olhos para ver e ouvidos para escutar (o que independe de termos visão, audição fisiologicamente perfeitas). É o que faz o professor de Mirco que, antes de ser professor, é gente, está vivo no sentido de estar em pleno contato com a força da vida e de não ser, apenas, um “cagador de regras” – ele não deixou secar em si a sua própria capacidade transgressora.
Mirco não teria chegado onde chegou, nem teria levado tantos com ele, não fosse o olhar e a escuta desse professor. Tanto para ele, quanto para Mirco, o céu pode ser vermelho. E, por que não?

Evelin Pestana


*Em Psicanálise não importa muito essa distinção entre ficção e realidade. A ficção é a nossa realidade e mesmo quando os fatos são "reais", o que importa é como o sujeito vivenciou ou fez a experiência desse fato.

terça-feira, 16 de junho de 2009

O HOMEM E O URSO

Outro dia uma amiga me enviou um clip onde era feito um paralelo entre duas cenas. Na primeira, um homem, por vários dias, sai de sua casa para trabalhar, volta e, a cada retorno, encontra sua casa diminuída, tendo que se agachar, se encolher, cada vez mais, para poder passar pela porta, para entrar e sair, para ir e vir. Até que, um dia, não lhe era mais possível entrar... Ele, então, sem saída (ou melhor, sem entrada), permanece sentado na soleira da porta, cabeça baixa; o homem se tornara uma criança desamparada, a pasta do trabalho e a gravata que ele usava, agora meros artifícios inúteis, sem o menor valor para alguém que, ao perder a casa, também perdia seu próprio valor de homem, trabalhador, chefe de família, ser do sexo viril...

Esta pequena e intensa historinha é colocada em analogia com uma outra cena, onde uma historia ainda menor, mas muito mais intensa, vinda de um outro animal, que não um homem, nos defronta com um sentido, trágico, a ser dado ao “homem sem teto” (homem sem teta, desmamado, desamparado) da historia anterior: um urso polar sob uma pequena placa de gelo que boiava em meio ao oceano, vagava, de um lado para outro da placa, e em dois ou três pequenos passos, de lá para cá, de cá para lá, descobria, sem que, entretanto, pudesse se conformar com o fim da vida que se anunciava, que ele não tinha saída, que sua casa havia sido reduzida a apenas um curto pedaço de gelo – que nós, seres pensantes, sabemos que se derreteria num curto espaço de tempo.

Para o homem, não havia entrada. Para o urso, não havia saída... E eis que em questão de segundos, a vida humana e a vida animal perdem os elementos que, teoricamente, as diferenciam (terno, gravata, pasta de trabalho, ilusões necessárias...), para se igualarem no limite da existência, da finitude, da recusa de todo ser vivo em deixar de existir. Da tristeza de não poder morrer por seus próprios meios...

Assim como o tempo, a vida tem sido cada vez mais abreviada. Sem tempo para amar, sem tempo para pensar, sem tempo para sentir...Sem tempo para viver, nem sequer nos darmos conta de que também a nossa vida já não vale mais nada, está em vias de se extinguir. Ironia e paradoxo do homem: buscando viver ao máximo, nos esquecemos de preservar a vida...

Inúmeros apelos tem sido feitos a favor da preservação de nosso planeta. Em sua maioria, o apelo é o de que preservemos o planeta para nossos netos, bisnetos... O que é extremamente válido!

Mas, o urso que, em desespero, vagava de lá para cá, de cá para lá, nos faz lembrar de um outro/mesmo lado dessa tragédia na qual estamos todos, sem exceção, incluídos: “em que estamos nos transformando?”

Ao querer vencer a morte, a finitude; na ânsia de conseguir o máximo de satisfação possível; ao desconhecer sua mortalidade; ao se pensar um Super-Homem, o homem parece estar, realmente, alcançando tal objetivo: autômatos, fantasiamos com nossos umbigos os maiores gozos, os impensáveis prazeres ainda nem sequer descobertos como tais... e esquecemos de que somos feitos de carne e osso. E de que, tal como o urso polar, estamos, cada vez mais, vivendo numa ilhota (sem amigos, sem amores, sem afetos), cercados de tecnologia por todos os lados.. e sem termos para onde ir.

Estamos cada vez mais nos retirando do ciclo da vida, e não levando em conta que precisamos criar seres humanos melhores para podermos ter um planeta melhor (ou o que restar dele). A clonagem humana – um dos efeitos do delírio de imortalidade do homem – viria nos salvar da extinção da espécie?

Em que pese os indiscutíveis avanços da ciência e da tecnologia, creio que é preciso pensarmos também em algo mais simples, mais ao alcance de nosso cotidiano de simples seres humanos: nossa capacidade de encontrar novas saídas e novas entradas para nossas ambições, ilusões, delírios – para citarmos apenas algumas das características que nos diferenciam das outras espécies animais.

Sem querer puxar a brasa para a nossa sardinha (este é um blog no qual participam psicanalistas que, entretanto, não se esqueceram de que são humanas, antes de serem psicanalistas), creio oportuno lembrar que nossos consultórios estão cada vez mais repletos de pessoas que não conseguem trocar, que não conseguem fazer bons vínculos, que se encontram cada vez mais ilhadas em seu próprio mundo, aterrorizadas, deprimidas, em pânico, apáticas ou em delírios que não necessariamente são percebidos como tais.

Pais e mães que não sabem mais como ser pai, como ser mãe. Filhos e filhas que não podem mais ocupar esse lugar. Crianças que não são crianças. Idosos que não sabem mais o que fazer com a vida que se estende, sem que possam realmente se sentir vivos...

Imersos no paradoxo do nosso tempo de globalização, de terras sem fronteiras, vamos perdendo nossos limites, nosso corpo, nossa capacidade de refletir, de produzir; nos tornamos, cada vez mais, meros reprodutores... tendo que decidir, por conta própria, que caminho seguir. E na maioria das vezes, porque não suportamos a solidão, nos deixamos levar pelas “novas ondas do Imperador” (alusão ao filme/desenho, dito infantil, “A nova onda do Imperador”, que todo adulto deveria assistir!)

A psicanálise sabe do potencial humano: somos, realmente, capazes de tudo, para o bem e para o mal. A psicanálise sabe que o homem não é capaz de viver isolado mas que, ao ser apenas levado por essa força, sem que se possa dar-lhe um outro destino, uma outra entrada, uma outra saída, nos tornamos presas de nós mesmos. A psicanálise respeita a “natureza” humana, não busca (porque se sabe impotente, nesse sentido), eliminar nossa potencialidade, nossa força construtiva e destrutiva. A psicanálise, diferentemente do mundo capitalista, tecnológico, cientifico-laboratorial, é, ainda, o único saber que tem a coragem de se dizer: sem álibi! (alusão ao texto de J. Derrida, filosofo que compartilha do pensamento psicanalítico).

“Sem álibi!” significa que, do ponto de vista dos analistas que não se afastarem de sua humanidade, que não se esconderam por detrás de suas teorizações, a psicanálise também tem (e deve ter!) um lugar marcado na defesa da espécie humana - para além, ou para aquém, das clonagens, do dólar em alta ou em baixa, enfim, de todos os prozacs e ecstasis da vida que atualmente nos adormecem, nos apagam (as “novas ondas do Imperador”!), roubando nossas vidas...com nosso consentimento, dado, por vezes, no ápice de nossa paixão pela ignorância.

As imagens do homem e do urso que não tinham mais para onde ir, que não podiam mais fazer os movimentos de entradas e saidas que compõem o ciclo da vida, não me saiam da cabeça: ficavam ali, gritando para que eu fizesse algo com elas. Escrever nesse blog foi uma das saídas encontradas, até agora, para dar vazão a minha angustia, ao excesso de lucidez vez por outra necessária para que acordemos do sonho da vigília.

Ao escrever este texto, minha aposta é a de que estas palavras encontrem outras entradas e saídas nos ouvidos e corações daqueles que, assustados, se sentem impotentes diante da máquina que “governa” o mundo. E, cada um a seu modo, faça o que estiver ao seu alcance, faça o seu mundo girar, com novas entradas e novas saídas – ao invés de se sentirem ilhados ou sem teto (sem teta, desmamados, desamparados).

Deixo, para terminar (e não para concluir), duas afirmações:

1) Não somos capazes de viver em ilhotas.
2) Precisamos pensar em reciclar os humanos que hoje (ainda) habitam este planeta.

Ou nos reciclamos enquanto seres humanos, ou morreremos ilhados.

À AMIGA QUE ME ENVIOU O CLIP DO URSO, MEU ENORME CARINHO!

EP

segunda-feira, 8 de junho de 2009

"Metendo a mão na cumbuca" da Reforma Psiquiátrica...

Uma amiga leu na Revista Época que o poeta Ferreira Gullar tinha dois filhos esquizofrênicos e ficou muito espantada, como assim??? Dois filhos esquizofrênicos???
Fui dar uma olhada na matéria da Época e acabei sabendo que o Ferreira Gullar está no centro de uma discussão polêmica pois escreveu dois artigos na Folha de São Paulo sobre a falta de leitos em hospitais psiquiátricos, gerada, segundo ele, pela reforma dos hospitais psiquiátricos com a aprovação da lei 10.216 de 2001, que diminuiu sensivelmente a quantidade de leitos em hospitais psiquiátricos em todo o Brasil.
Pelo que sei a aprovação dessa lei é fruto do trabalho árduo e da luta contínua de muitas pessoas envolvidas com saúde mental (médicos, psicólogos, psiquiatras), ao longo de muitos anos (desde a década de 70) e é um processo que não aconteceu só no Brasil, pelo contrário, vários países já têm leis melhores e condições melhores de tratamento para seus doentes mentais.
A questão é super polêmica: o que fazer com nossos “doentes mentais”? Internar, dopar, dar choque elétrico e em última instância “lobotomizar” todos eles? Durante muitos anos foi só o que esses doentes tiveram... As famílias por não saberem ou não quererem lidar com seus doentes, achavam que interná-los era a solução e então essas pessoas eram internadas, longe dos olhos (e do coração) e sabe-se lá o que acontecia a partir daí... Os doentes eram abandonados, exilados do convívio familiar, ficavam confinados durante anos, sem tratamento, sem visitas, vivendo em condições sub-humanas, o manicômio era tão somente um “depósito” de doentes...
Há alguns anos atrás, vi um documentário sobre a Colônia Juliano Moreira aqui no Rio e fiquei estarrecida ao ver o que era um manicômio público!!! Até o nome “manicômio” é pejorativo, é sinônimo de abandono, de falta de humanidade... Algumas pessoas estavam internadas há tantos anos, que não sabiam mais quem eram, se tinham família, não conheciam outra vida que não fosse aquela... Coisa não muito diferente acontecia nos manicômios particulares... Pagava-se uma fortuna para internar a pessoa lá e todos eram tratados da mesma forma, um psicótico, uma pessoa com dificuldade de relacionamento social, um adolescente rebelde, uma pessoa viciada em drogas ou mesmo um borderline... Tem um filme americano (Garota Interrompida), que retrata bem essa condição de “igualdade” com que todos eram tratados nos manicômios até a década de 60, juntava-se todo tipo de doente, administrava-se doses pesadas de sedativo, as terapias eram direcionadas e enquadrar o sujeito num modelo pré-estabelecido de conduta e se o doente fosse “rebelde ou agressivo”, levava choques elétricos...
Obviamente que toda essa discussão sobre a doença mental passa também pela questão social... Há quem possa pagar médicos, remédios, acompanhantes terapêuticos, terapias e uma série de outras coisas para manter o doente em casa, mas e quem não tem condições financeiras para isso? Acorrenta o doente em casa? Pára de trabalhar para poder cuidar da pessoa? E os remédios caríssimos, quem paga? E então como fica? A pessoa foge de casa, surtada, desaparece no mundo, ninguém mais sabe dela e, com certeza acaba ficando na rua, perdida, agressiva, tentando sobreviver... a gente topa com essas pessoas diariamente nas ruas...
Tenho uma amiga médica, pediatra de um hospital público, que presenciou várias vezes, que algumas crianças doentes que davam entrada pela emergência, quanto tinham alta ninguém ia buscá-las, o hospital mandava levar as crianças para casa de ambulância e o endereço não existia... Isso se faz com crianças “normais”, imagino o que se faz com os doentes mentais...
Não estou negando que o convívio com um doente mental é extremamente difícil, estressante, sofrido e gera um desgaste psíquico enorme, mas que pode haver uma outra forma de tratar essas pessoas com humanidade, apostando numa recuperação ou pelo menos numa estabilidade emocional, desde que ela não seja exilada em sua própria doença!!!
Acredito que a internação em alguns casos é necessária e imprescindível, mas por pouco tempo, pelo tempo necessário à estabilização do paciente, que deve voltar ao convívio da família no mais breve espaço de tempo possível.
Hoje, depois do inicio da Reforma Psiquiátrica, fala-se em humanizar os hospitais psiquiátricos, fala-se de hospital-dia, fala-se de socialização, de integração, de terapias alternativas, remédios... Temos hoje um “arsenal” de remédios, que podem não curar, mas estabilizam determinadas doenças, temos profissionais de saúde envolvidos nessa luta diária buscando alternativas para a internação, o isolamento e o esquecimentos. Há hoje uma tentativa de se tirar a responsabilidade da “Instituição Psiquiátrica” e colocá-la nas mãos de todos, famílias, governos, comunidades, fazendo com que todos se envolvam nessa questão. Não cabe ao estado ser o único responsável por “cuidar” desses pacientes, as famílias podem e devem também se responsabilizar pelo tratamento de seus doentes em casa e cobrar das autoridades, das pessoas envolvidas com saúde mental, dos laboratórios, das ONG’s, da sociedade civil, enfim, de qualquer pessoa que tenha uma "boa idéia e disposição", para que se chegue a uma solução mais humana para os doentes mentais, para que eles possam ser acolhidos da melhor forma possível.
Sei que é utópico e impossível se pensar numa solução caso a caso... Mas não dá para rotular as pessoas e carimbar na testa que tipo de doença mental ela tem, pois nenhum doente é igual ao outro, nenhuma pessoa é igual à outra, o ser humano é tão fantástico que consegue ser diferente até nas suas semelhanças... Que bom!!!

Gisele

sábado, 23 de maio de 2009

Hermafroditismo...

Sempre achei que o hermafroditismo não existia ... Nunca conheci ninguém que fosse hermafrodita, nem nunca soube de alguém próximo, nunca ninguém me contou que alguém da família ou conhecido era hermafrodita, portanto, achava que era coisa de ficção ou uma desculpa familiar pra justificar algum comportamento diferente em suas crianças e adolescentes.
Estudei um pouco de genética na escola e ninguém falava disso (claro, eram outros tempos, e falar disso era totalmente impensável...) e mais recentemente na faculdade, quando estudei um pouco mais de genética, inclusive com vários trabalhos sobre síndromes e possíveis problemas genéticos, também nada foi falado.
Durante esta semana, acabei vendo um filme e um seriado que tratavam desse assunto e fiquei super interessada... Dei uma pesquisada básica no “meu amigo Google” e descobri que existe 1 indivíduo hermafrodita para cada 25 mil nascidos!!! É um número consideravelmente alto... Não se tem certeza das causas, mas se sabe que é um problema causado por anomalias cromossômicas, variam de indivíduo para indivíduo e existem vários tipos de hermafroditismo, com tendências tanto para o lado masculino quanto para o lado feminino. O mais intrigante é que quando a criança nasce, não há como se determinar de que sexo ela é, pois em alguns casos, além de existirem os dois sexos externos, os órgãos internos são parte masculinos e parte femininos e um exame genético também não esclarece o sexo do bebê.
Enfim, o bebê nasce e surge a dúvida cruel, mortal, como criar esse bebê? Como uma menina ou como um menino? Fico imaginando a angústia desses pais que precisam tomar uma decisão que afetará profundamente o futuro de seu filho(a). Já é difícil lidar com todas as questões emocionais que envolvem a decisão de se ter um filho, que passam pela gravidez, pelo parto, pelo nascimento, pelo futuro do bebê, e ainda se defrontar com essa questão completamente nova, pouco falada/divulgada, muito complexa, que mexe com todos os conceitos minimamente resolvidos sobre as questões sexuais, sobre papéis femininos e masculinos, sobre as opções sexuais futuras...
A solução, se é que se pode chamar isso de “solução”, é cirúrgica, onde se adequará a parte genital da criança ao gênero escolhido pelos pais... O que deve ser uma decisão dificílima, pois além da parte psicológica, social, moral ou religiosa, a parte fisiológica exige uma série de intervenções cirúrgicas, internações em hospitais, cicatrizes físicas e emocionais sem fim...
Outra “solução” possível é não se fazer nada, esperar a criança chegar à puberdade e ela própria escolher o sexo que quer ter, o que fatalmente ocasionará uma criança meio “híbrida” ou andrógina, até que chegue a hora da escolha e se tomem as medidas necessárias com relação à parte física, com administração de hormônios e a adequação do órgão ao sexo escolhido...
Na realidade quaisquer que sejam as soluções, implicam em muito sofrimento para todos, até porquê se o sexo é determinado pelo biológico, não tem saída, e se o sexo é determinado pelo psicológico, também não tem saída!!!
Então, o que fazer? Determinar o sexo do bebê no nascimento, intervir fisicamente e criar de acordo com essa “escolha” ou deixar o adolescente “escolher” por si próprio e depois tomar as medidas necessárias à adequação?
Seria fácil se a sexualidade do sujeito dependesse exclusivamente de fatores puramente biológicos ou se fosse determinada só pela forma “manualizada” de se criar filhos: meninos são assim (brincam de bola) e meninas são assado (brincam de bonecas). O problema está em que pra além do biológico, a sexualidade e a escolha de um objeto amoroso, depende do quanto de investimento afetivo se faz no bebê, na relação com a mãe, na relação entre os pais, na relação dos pais com os filhos, nas identificações que a própria criança produz, na passagem pelo Édipo, pelo narcisismo, etc...
Ficam aí as perguntas, quem se habilita ???

Bjs
Gisele




segunda-feira, 11 de maio de 2009

Dia das mães...

Sei que é uma data que surgiu da necessidade de se incrementar o comércio, como o dia dos pais, das crianças, dos namorados, agora tem até o dia da avó, da sogra, do amigo... Mas, como esse dia se comemora há muito mais tempo, acabou ficando marcado no imaginário de todos nós e queiramos ou não, “entramos nele” de algum jeito, bem ou mal, triste ou feliz, sozinhos ou com mães e filhos.
Fui com meus filhos almoçar na casa da minha irmã, que após anos sozinha, agora tem sua filha e netos morando com ela, o que foi uma bela oportunidade de reunir o resto da família, que eu não via há tempos, embora moremos na mesma cidade, sou a irmã "desgarrada". E meus irmãos moram todos no mesmo lugar, uma casa em baixo, uma casa em cima e uma casa atrás, o que gera conflitos enormes, pois são um “condomínio” sem regras e limites claros, o que me enlouquece só de imaginar em compartilhar esse espaço comum com todos eles e mais sobrinhos e agregados.

Somos uma família grande, éramos 5 irmãos, em “escadinha” como era comum nas famílias de antigamente, com avós morando junto e a casa sempre cheia de amigos e parentes, até porque somos de SP e a família vinha sempre se hospedar aqui no Rio. Nossa ascendência é italiana e falávamos todos ao mesmo tempo, muito alto, mexendo muito com as mãos e de longe, parecia que estávamos sempre brigando... mas não era assim, brigávamos muito, claro, mas sempre nos uníamos contra qualquer coisa ou pessoa que pudesse minimamente “arranhar” aquela relação, cheia de conflitos, mas onde aprendemos a dividir, a trocar, a abrir mão das coisas, a contar com alguém, a estabelecer certos limites, a compartilhar segredos (nem tão secretos, pois em meia hora não havia mais segredo nenhum que resistisse...) e também, como um micro-cosmo do mundo, aprendemos a lidar com a inveja, o ciúme, o ódio, o “puxar o tapete” do outro, a competição, a cair, engolir as lágrimas e a levantar...

Meus pais eram iguais aos milhões de pais daquela geração, meu pai era o provedor, quem detinha o poder e dava a última palavra em tudo, também era o primeiro a se servir à mesa, o melhor bife era o dele, o pedaço mais nobre do frango, o peito, idem... então brigávamos sempre pelo resto do frango, minha mãe ficava com o pescoço e costumava dizer que “adorava pescoço”. Levamos anos pra descobrir que ela jamais gostou do pescoço!!!

Minha mãe, dona de casa, organizava a bagunça junto com 2 empregadas que faziam o trabalho de casa, que ela detestava, e mantinha as rédeas curtas sobre a “moral e bons costumes”. Não podíamos usar biquíni, nem saia curta e tínhamos de estar em casa antes de escurecer, pois “seu pai não gosta que vcs cheguem tarde em casa” !!! Hoje sei que a maioria das regras era ela quem determinava e na verdade, usando de sua prerrogativa feminina, manipulava a todos, inclusive meu pai.

Mas funcionava. Hoje somos todos adultos na faixa dos 45/55 anos, casamos, descasamos, tivemos filhos, netos, trabalhamos, nos aposentamos, enfim, vivemos nossa vidinha, “neuroticamente normal” e sei que somos o que eles nos fizeram ser... Haviam papéis definidos, quem mandava em quê, quando, onde e como. Tínhamos hora pra dormir, para acordar, pra fazer dever, pra brincar e ver TV, quando assuntos de adultos eram tratados, tínhamos de sair da sala, sabíamos como nos comportar, só com um olhar severo da minha mãe... Meus pais iam ao cinema uma vez ou outra e até hoje me lembro que nesses dias minha mãe colocava perfume e batom e nessa ocasião, meu pai olhava para ela com os olhos brilhando. ..

Tínhamos os queridinhos e queridinhas e sofremos muito com isso pois, obviamente todos queríamos ser queridinhos(as), também tínhamos os detestáveis rótulos familiares: o inteligente, o bonito, o feio, o meio burrinho, mas esforçado, o que não fede nem cheira, etc. E brigas, muitas brigas !!! Braços e pernas quebrados, galos na cabeça e muitos, mas muitos pontos, aqui e ali, sempre tinha um machucado ou quebrado.

E hoje, adultos e com nossos filhos em volta, lembramos de tantas histórias, tantos “causos”, que para serem contados precisávamos estar todos juntos, pois cada um lembrava uma parte da mesma história. Rimos muito mas também tivemos muitos momentos de olhos marejados, voz embargada, choros contidos, por lembrarmos das perdas de nossos pais e de nossa irmã mais velha. E vi que continuamos sendo uma família, apesar das perdas. Parecia que eles continuavam lá, parecia que não faltava ninguém, e de certa forma, estavam, pois através de nós, de nossa história, de nosso passado, eles continuam vivos, ali, um pedacinho em cada um de nós...

Espero que todos tenham tido um feliz dia das mães, da melhor forma possível, ou como filhos ou como mães ou como pessoas que estão no mundo fazendo às vezes de mãe de alguém...


Bjs
Gisele