terça-feira, 16 de junho de 2009

O HOMEM E O URSO

Outro dia uma amiga me enviou um clip onde era feito um paralelo entre duas cenas. Na primeira, um homem, por vários dias, sai de sua casa para trabalhar, volta e, a cada retorno, encontra sua casa diminuída, tendo que se agachar, se encolher, cada vez mais, para poder passar pela porta, para entrar e sair, para ir e vir. Até que, um dia, não lhe era mais possível entrar... Ele, então, sem saída (ou melhor, sem entrada), permanece sentado na soleira da porta, cabeça baixa; o homem se tornara uma criança desamparada, a pasta do trabalho e a gravata que ele usava, agora meros artifícios inúteis, sem o menor valor para alguém que, ao perder a casa, também perdia seu próprio valor de homem, trabalhador, chefe de família, ser do sexo viril...

Esta pequena e intensa historinha é colocada em analogia com uma outra cena, onde uma historia ainda menor, mas muito mais intensa, vinda de um outro animal, que não um homem, nos defronta com um sentido, trágico, a ser dado ao “homem sem teto” (homem sem teta, desmamado, desamparado) da historia anterior: um urso polar sob uma pequena placa de gelo que boiava em meio ao oceano, vagava, de um lado para outro da placa, e em dois ou três pequenos passos, de lá para cá, de cá para lá, descobria, sem que, entretanto, pudesse se conformar com o fim da vida que se anunciava, que ele não tinha saída, que sua casa havia sido reduzida a apenas um curto pedaço de gelo – que nós, seres pensantes, sabemos que se derreteria num curto espaço de tempo.

Para o homem, não havia entrada. Para o urso, não havia saída... E eis que em questão de segundos, a vida humana e a vida animal perdem os elementos que, teoricamente, as diferenciam (terno, gravata, pasta de trabalho, ilusões necessárias...), para se igualarem no limite da existência, da finitude, da recusa de todo ser vivo em deixar de existir. Da tristeza de não poder morrer por seus próprios meios...

Assim como o tempo, a vida tem sido cada vez mais abreviada. Sem tempo para amar, sem tempo para pensar, sem tempo para sentir...Sem tempo para viver, nem sequer nos darmos conta de que também a nossa vida já não vale mais nada, está em vias de se extinguir. Ironia e paradoxo do homem: buscando viver ao máximo, nos esquecemos de preservar a vida...

Inúmeros apelos tem sido feitos a favor da preservação de nosso planeta. Em sua maioria, o apelo é o de que preservemos o planeta para nossos netos, bisnetos... O que é extremamente válido!

Mas, o urso que, em desespero, vagava de lá para cá, de cá para lá, nos faz lembrar de um outro/mesmo lado dessa tragédia na qual estamos todos, sem exceção, incluídos: “em que estamos nos transformando?”

Ao querer vencer a morte, a finitude; na ânsia de conseguir o máximo de satisfação possível; ao desconhecer sua mortalidade; ao se pensar um Super-Homem, o homem parece estar, realmente, alcançando tal objetivo: autômatos, fantasiamos com nossos umbigos os maiores gozos, os impensáveis prazeres ainda nem sequer descobertos como tais... e esquecemos de que somos feitos de carne e osso. E de que, tal como o urso polar, estamos, cada vez mais, vivendo numa ilhota (sem amigos, sem amores, sem afetos), cercados de tecnologia por todos os lados.. e sem termos para onde ir.

Estamos cada vez mais nos retirando do ciclo da vida, e não levando em conta que precisamos criar seres humanos melhores para podermos ter um planeta melhor (ou o que restar dele). A clonagem humana – um dos efeitos do delírio de imortalidade do homem – viria nos salvar da extinção da espécie?

Em que pese os indiscutíveis avanços da ciência e da tecnologia, creio que é preciso pensarmos também em algo mais simples, mais ao alcance de nosso cotidiano de simples seres humanos: nossa capacidade de encontrar novas saídas e novas entradas para nossas ambições, ilusões, delírios – para citarmos apenas algumas das características que nos diferenciam das outras espécies animais.

Sem querer puxar a brasa para a nossa sardinha (este é um blog no qual participam psicanalistas que, entretanto, não se esqueceram de que são humanas, antes de serem psicanalistas), creio oportuno lembrar que nossos consultórios estão cada vez mais repletos de pessoas que não conseguem trocar, que não conseguem fazer bons vínculos, que se encontram cada vez mais ilhadas em seu próprio mundo, aterrorizadas, deprimidas, em pânico, apáticas ou em delírios que não necessariamente são percebidos como tais.

Pais e mães que não sabem mais como ser pai, como ser mãe. Filhos e filhas que não podem mais ocupar esse lugar. Crianças que não são crianças. Idosos que não sabem mais o que fazer com a vida que se estende, sem que possam realmente se sentir vivos...

Imersos no paradoxo do nosso tempo de globalização, de terras sem fronteiras, vamos perdendo nossos limites, nosso corpo, nossa capacidade de refletir, de produzir; nos tornamos, cada vez mais, meros reprodutores... tendo que decidir, por conta própria, que caminho seguir. E na maioria das vezes, porque não suportamos a solidão, nos deixamos levar pelas “novas ondas do Imperador” (alusão ao filme/desenho, dito infantil, “A nova onda do Imperador”, que todo adulto deveria assistir!)

A psicanálise sabe do potencial humano: somos, realmente, capazes de tudo, para o bem e para o mal. A psicanálise sabe que o homem não é capaz de viver isolado mas que, ao ser apenas levado por essa força, sem que se possa dar-lhe um outro destino, uma outra entrada, uma outra saída, nos tornamos presas de nós mesmos. A psicanálise respeita a “natureza” humana, não busca (porque se sabe impotente, nesse sentido), eliminar nossa potencialidade, nossa força construtiva e destrutiva. A psicanálise, diferentemente do mundo capitalista, tecnológico, cientifico-laboratorial, é, ainda, o único saber que tem a coragem de se dizer: sem álibi! (alusão ao texto de J. Derrida, filosofo que compartilha do pensamento psicanalítico).

“Sem álibi!” significa que, do ponto de vista dos analistas que não se afastarem de sua humanidade, que não se esconderam por detrás de suas teorizações, a psicanálise também tem (e deve ter!) um lugar marcado na defesa da espécie humana - para além, ou para aquém, das clonagens, do dólar em alta ou em baixa, enfim, de todos os prozacs e ecstasis da vida que atualmente nos adormecem, nos apagam (as “novas ondas do Imperador”!), roubando nossas vidas...com nosso consentimento, dado, por vezes, no ápice de nossa paixão pela ignorância.

As imagens do homem e do urso que não tinham mais para onde ir, que não podiam mais fazer os movimentos de entradas e saidas que compõem o ciclo da vida, não me saiam da cabeça: ficavam ali, gritando para que eu fizesse algo com elas. Escrever nesse blog foi uma das saídas encontradas, até agora, para dar vazão a minha angustia, ao excesso de lucidez vez por outra necessária para que acordemos do sonho da vigília.

Ao escrever este texto, minha aposta é a de que estas palavras encontrem outras entradas e saídas nos ouvidos e corações daqueles que, assustados, se sentem impotentes diante da máquina que “governa” o mundo. E, cada um a seu modo, faça o que estiver ao seu alcance, faça o seu mundo girar, com novas entradas e novas saídas – ao invés de se sentirem ilhados ou sem teto (sem teta, desmamados, desamparados).

Deixo, para terminar (e não para concluir), duas afirmações:

1) Não somos capazes de viver em ilhotas.
2) Precisamos pensar em reciclar os humanos que hoje (ainda) habitam este planeta.

Ou nos reciclamos enquanto seres humanos, ou morreremos ilhados.

À AMIGA QUE ME ENVIOU O CLIP DO URSO, MEU ENORME CARINHO!

EP

Um comentário:

  1. Seu texto complementa lindamente o vídeo que AP compartilhou conosco e me leva a pensar sobre as questões ecológicas, tão em voga, sob um novo ângulo. Sem querer ser pessimista, não consigo abandonar o questionamento que insiste em perguntar de que adianta preservar as matas, os mananciais hídricos e a camada de ozônio, se não formos capazes de preservar a natureza humana, que é o que vem a dar sentido, a tudo e todos que existem no mundo? Sim, suas palavras me remetem ao estado de torpor contemporâneo do ser humano, belo adormecido de terno e gravata e deitado em berço esplêndido de sua "Matrix", sem se dar conta que é prisioneiro de sua própria armadilha tecnológica, que o faz crer-se todo poderoso e invencível...Voltando ao ponto inicial, penso que a preservação do macrocosmo, representado por nosso planeta, só poderá se dar na medida em que formos capazes de preservar o microcosmo da natureza humana. Será a partir de nos vermos como seres no mundo (e do mundo) e de nos darmos conta de nosso desamparo diante do Real, quando esse "vem rente que nem pão quente", que poderemos preservar a Natureza e o mundo que, afinal de contas, nada mais são do que o reflexo de nossa própria percepção. Estou desde ontem eufórica com esse texto e seus desdobramentos!!! Grande beijo!!!!

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