domingo, 12 de abril de 2009

CO-MEMORAR


Um blog do qual participam psicanalistas não poderia deixar passar em branco o dia da Páscoa. Surpresa? Você também acha que psicanalista é ateu? Não tem religião? Bem, depende do que você entende por religião. Do latim “religare”, religião significa “ligar de novo”: ligar de novo o que uma vez esteve ligado e foi desligado/esquecido; ligar o que jamais esteve ligado, permanecendo nas sombras sem, entretanto, deixar de nos assombrar; ligar o que jamais pensamos que poderíamos pensar...

Nesse sentido, religião é colocar em atividade a possibilidade do encontro, do acontecimento, sempre de forma positiva, ainda que isso nos custe um certo esforço. E é aí que entram os psicanalistas: pessoas que fizeram a experiência de se deixar atravessar por novas formas de ligação e que, por isso, são capazes de acompanhar o trabalho das chamadas pulsões de vida – aquelas cuja função é, justamente, atar-nos à vida.

É por aí que sou religiosa: o sentido da Páscoa não está somente em comer chocolate - o que não impede que isso aconteça, também! Quem disse que o coelho da Páscoa não pode ser fundamental? As ligações, a vida, pode despontar, renascer pelos caminhos mais simples e/ou mais absurdos...

Co-memorar a Páscoa é “lembrar junto”: de que somos portadores da capacidade de renovação; de que somos capazes de mudanças internas e externas, de que podemos “trocar de pele”, de que não se nasce apenas uma vez. De que podemos esquecer de querer esquecer de tudo, até do fato de que somos portadores da vida. Disso também é feita a função do psicanalista.

A Psicanálise surge quando todos e tudo procuravam “esquecer” que a vida é maior do que as moralidades, as religiões com seus absurdos, o conservadorismo barato, a violência injustificada – enfim, tudo o que vai de encontro ao movimento incessante da vida, em suas mais variadas formas de manifestação. A Psicanálise nasceu, portanto, religiosa: se propondo a ligar o que ficava “abafado”, o que era mal-dito. Após 109 anos de sua criação, como estaria a Psicanálise, aos olhos do mundo? Renovando-se... e continuando a trabalhar para que nossa capacidade de co-memorar seja ampliada, para que usemos cada vez menos (apenas quando for absolutamente necessário!), nossa capacidade de esquecimento, esta sim, sempre alerta, sempre aí!

Co-memorar a Páscoa é uma tentativa (ingênua, talvez) da nossa civilização de combater esse tal do esquecimento, essa mania de achar que o ser humano pode evoluir sem sentir, sem olhar para o que lhe traz incômodos, para o que lhe faz sofrer... Mas não insistimos em esquecer, em não co-memorar porque somos covardes, porque temos medos. A covardia e o medo geralmente entram em segundo lugar; já são o efeito de um outro velho e jamais deteriorado hábito, que somente os humanos possuem: o de pensar-se na obrigação de “ser perfeito”.

Creio que se “Deus criou o homem e a mulher”, foi para provar que a força da vida é mais forte do que nossas tentativas de nos tornarmos perfeitos. Ao insistirmos na perfeição, quantas vezes esquecemos de viver? E com tal esquecimento, toda a nossa capacidade de renovação, vai por água abaixo... com a gente junto, é claro!

Este pequeno texto tem por objetivo contribuir (ingenuamente, eu sei! O esquecer é automático, lembra-se?) para nos lembrarmos de que não dá para ter uma vida plena (e isso não significa uma vida totalmente feliz!), se não acionarmos o botão da renovação, de vez em quando, pelo menos... E, falando sério: existe algo mais absurdo, mais violento, mais cruel do que essa exigência de sermos perfeitos? Portanto, co-memore! Se ligue!

E, sobretudo, procure não esquecer: mais importante do que sermos perfeitos, é nossa capacidade de nos responsabilizarmos pela vida que queremos ter. Sem isso a gente nem começa a viver...

Bjs

EP

5 comentários:

  1. lianna13.4.09

    Olá! Vim "oficialmente" dar meus parabéns pela iniciativa do blog. Adoro ler coisas interessantes, que fazem pensar; e não só informação guela a dentro.
    A quase última frase deste texto me chamou a atenção "...mais importante...queremos ter." Achei essa observação final fascinante, pois demorei um tepinho (26 anos) para perceber este fato: somos nós mesmos os responsáveis por nossas vidas, como elas estão, como são, etc. O mais comum é acharmos um monte de coisas erradas e responsabilizarmos sabe quem ou o que por esses erros, e nós, "santos' não precisamos nem nos preocupar, pois nos desligamos totalmente da causa e só vemos as consequências desagradáveis do nosso próprio comportamento... beijos lianna

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  2. Evelin,

    Esse texto merecia ir parar na Vogue, na Elle, na Cláudia, na Marie Claire e/ou na Nova.

    Quem sabe assim, as editoras dessas "bíblias" da modernidade não acabariam por achar um sacrilégio essa cobrança do ser ideal, principalmente da mulher, que TEM que ser uma mãe equilibrada, doce e amorosa, filha exemplar, profissional respeitada e bem remunerada, ter um corpo perfeito, ser simpática com os vizinhos, usar o batom da marca tal, saber (e ter tempo) para preparar um jantarzinho simples e rápido de vitela com arroz selavagem e cubos flambados de abacaxi, fazer lifting a cada 3 meses, e claro, ser uma fervorosa amante.

    Ainda bem que existem algumas mulheres (e homens) que se permitem algumas horas de descanso, férias, um almocinho com as amigas, um livro, uma rede, um arranco-rabo em casa, um esporro nos filhos, não ligar para a mãe (nem pra sogra), enfim, viver sem essa cobrança exagerada de cumprir todas as tarefas sem falhar em nada e, ainda ser pontual.

    Quem sabe se tentássemos conviver amigavelmente com os limites inerentes à nossa condição humana, nossas exigências mais elevadas se apresentariam mais brandas e, como vc disse, nos presenteássemos com o viver.

    bjs
    AP

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  3. AP e Lianna,

    Nem sei o que dizer dos comentários de vcs! Aliás, sei sim: que maravilha ter por perto pessoas-pérola como vcs! Muito obrigada pelos elogios, acréscimos etc, etc... Sempre que encontro pessoas-pérolas como vcs fico feliz porque sei que outras pessoas - as que convivem com vcs - estarão bem acompanhadas e com mais chances de construir uma vida melhor! Raízes e asas - é tudo que uma pessoa precisa para viver... Bjs mil. EP

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  4. EP e demais seguidores,

    Chegando devagar, fiquei encantada com o blog como um todo. Formato e, principalmente, o conteúdo, recheado da delicadeza e da firmeza que constituem a alma feminina. Parabéns!!!

    Fui imediatamente capturada pelo texto sobre a Páscoa e já me tornei seguidora desse espaço tão promissor.

    Além de ser um texto muito do bem escrito, ele toca na questão da Páscoa como renascimento, o qual deve ser feito e re-feito continuamente, para que possamos (re)começar nossa jornada a cada dia, com o olhar surpreso da nossa criança interna, que mira o nascer do sol pela primeira vez...

    Assim é e assim deve ser sempre: iniciar cada dia como se fora o primeiro. As palavras contidas no texto apontam para essa possibilidade a qualquer tempo, em qualquer lugar, em qualquer credo, em qualquer abordagem, em qualquer paragem... Isso é saber viver bem! Isso é atemporal! Isso é sensacional!...

    Muitos beijos!!!

    Tomb Raider

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  5. Tomb Raider,

    Que orgulho ver vc aqui, mas mais importante ainda é te perceber recomeçando, renovada. Isso é vital. Parabéns e Obrigada!!!
    Te amo
    bjs
    AP

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